Política

Tarifa zero avança no interior de São Paulo e pressiona modelo de transporte da capital

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Levantamento mostra que 45 municípios paulistas já oferecem transporte gratuito; especialistas afirmam que entrave não é técnico, mas político, estrutural e de modelo de gestão  |   BNews SP - Divulgação Foto: reprodução/Freepik

Publicado em 19/12/2025, às 14h46   Ana Caroline Alves e Fernanda Montanha



A tarifa zero no transporte coletivo deixou de ser uma experiência isolada e passou a ocupar espaço crescente nas políticas públicas de mobilidade urbana no Brasil.

No Estado de São Paulo, 45 municípios já operam com passagem gratuita, segundo levantamento da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU), atualizado até junho de 2025. Em 42 dessas cidades, a gratuidade vale todos os dias da semana e para toda a população.

A política se concentra principalmente em municípios pequenos e médios, com menos de 100 mil habitantes, como São Caetano do Sul, Capão Bonito, Lins, Itapetininga, Porto Feliz, Cerquilho, Assis, Alumínio, Conchas, Artur Nogueira, Santa Isabel e Itapeva. Em comum, essas cidades operam redes mais simples, com frotas reduzidas e forte dependência de recursos municipais.

Segundo a NTU, a disseminação da tarifa zero está diretamente relacionada ao esgotamento do modelo tradicional de financiamento do transporte, baseado quase exclusivamente na cobrança do usuário.

Não há “tamanho ideal” para a tarifa zero

Para Gustavo Serafim, doutorando em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador das políticas de tarifa zero, a ideia de que o modelo só funciona em cidades pequenas é equivocada.

Não tem um tamanho ideal para a tarifa zero funcionar bem. Quando a gente olha para o Brasil, atualmente, há cidades, sobretudo médias e pequenas, que adotaram a política. Mas, olhando para fora, você tem Belgrado, por exemplo, na Sérvia, que tem 1,7 milhão de habitantes e adota a tarifa zero”, afirmou o pesquisador ao Bnews São Paulo.

Segundo ele, experiências e estudos recentes mostram que a política é plenamente viável também em grandes centros, desde que acompanhada de mudanças estruturais no financiamento e na gestão do sistema.

Um estudo conduzido por pesquisadores da UnB, entre eles Roberto André, Thiago Trindade, André Veloso e Letícia Bicho Domínguez, estima que o custo da tarifa zero em todo o país ficaria em torno de R$ 80 bilhões por ano, incluindo as grandes cidades. “Não existe um tamanho ideal específico para funcionar”, reforça Serafim.

Interior lidera e capital avança de forma limitada

Nos municípios paulistas, a maior parte da tarifa zero é financiada com recursos diretos do orçamento, via subsídios, fundos municipais ou arranjos locais. Em cidades pequenas, segundo especialistas, a gratuidade pode ser mais simples e até mais barata do que cobrar passagem.

De acordo com Rafael Calabria, coordenador do Programa de Mobilidade Urbana do Idec, em entrevista exclusiva ao Bnews São Paulo, isso ocorre porque o uso do transporte tarifado nesses municípios é baixo. Para ele, os casos no interior de São Paulo — e em outras regiões do país — mostram que, em cidades pequenas, a tarifa zero é uma solução mais simples do que a cobrança de passagem.

Isso acontece porque, em cidades pequenas, o uso do transporte com tarifa é baixíssimo, já que grande parte dos deslocamentos é feita a pé. Com pouco uso, a arrecadação tarifária acaba não gerando receita significativa.

“Entre as pessoas que usam o transporte, a maioria já é isenta (idosos e estudantes). Entre os pagantes, a maioria é usuária de vale-transporte e, nas cidades pequenas, uma parte significativa dessas pessoas é funcionária da prefeitura”, explica o coordenador.

Além disso, a adoção da tarifa zero permite eliminar custos com bilhetagem, fiscalização e combate à evasão, o que simplifica a gestão. “Ou seja, em cidades pequenas, a tarifa zero é, às vezes, uma solução econômica e prática”, diz Calabria.

Já nas cidades maiores, a gratuidade segue parcial. Em São Paulo, vale apenas aos domingos; em Salto e Rio Grande da Serra, aos domingos e feriados; em Ribeirão Pires, aos domingos, das 8h às 17h; e em São Carlos, nos fins de semana e feriados.

Na capital paulista, a tarifa zero aos domingos custa cerca de R$ 283 milhões por ano. Ainda assim, São Paulo segue cobrando R$ 5,00 nos ônibus, mesmo com subsídios que chegaram a R$ 6,1 bilhões em 2024 e devem ultrapassar R$ 7 bilhões em 2025 — o maior volume da história da cidade pelo quinto ano consecutivo.

Tarifa zero
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Usuários relatam mais circulação e mais cobrança por qualidade

Morador do Butantã, Aidan Rossi diz ao Bnews São Paulo que a tarifa zero aos domingos mudou sua relação com a cidade.

“Depois da gratuidade, passei a visitar mais lugares. Domingo retrasado fui conhecer o Museu das Favelas, no centro da cidade, que também é gratuito. Depois fui ver um amigo e acabamos indo a um restaurante. Talvez, se não tivesse tarifa zero, eu teria ficado o dia em casa”, relata.

Para ele, o impacto vai além do deslocamento. Aidan conta que tem a sensação de que a tarifa zero deixou a cidade mais movimentada e que ônibus antes vazios aos domingos agora estão mais cheios.

Thaymila Oliveira, moradora da zona oeste, teve uma experiência oposta com a linha turística Paulistar, também gratuita.

“Fiquei uma hora e meia esperando o ônibus. Ele passou duas vezes, mas o que deveria passar naquele horário não apareceu. Acabei optando por utilizar o transporte tradicional”, conta. Para ela, a gratuidade só faz sentido se vier acompanhada de frequência e confiabilidade. “Se for necessário cortar gastos para manter o transporte da linha Paulistar, é melhor encerrar o projeto.”

Impacto econômico: consumo, arrecadação e empregos

Onde a política amadureceu, os efeitos vão além da mobilidade. Em São Caetano do Sul, estudos apontaram aumento de até 36% no faturamento do comércio nas áreas atendidas por linhas gratuitas.

Um estudo da UnB estima que municípios com tarifa zero podem registrar aumento médio de 10,1% na arrecadação do ISS. Já uma pesquisa da FGV identificou crescimento de 3,2% no número de empregos, 7,5% no número de empresas e redução de 4,2% na emissão de gases poluentes em cidades com transporte gratuito.

Dados do IBGE, da Pesquisa de Orçamentos Familiares (2017–2018), ajudam a explicar o apelo social da política. As famílias brasileiras gastam mais com transporte do que com alimentação: R$ 234,08 per capita, contra R$ 219,44 com comida. O peso é ainda maior entre famílias de baixa renda e chefiadas por pessoas pretas ou pardas.

Para Millena, integrante do Movimento Passe Livre (MPL), a tarifa zero é uma resposta direta a esse cenário. “A tarifa é uma ferramenta de exclusão e segregação socioespacial. Se as pessoas deixam de ter esse gasto, passam a ter mais dinheiro para comer, para lazer, para se vestir melhor, para qualquer outra coisa”, afirma ao Bnews São Paulo.

Para o MPL, o principal obstáculo não é econômico. “A tarifa zero é, acima de tudo, uma escolha política”, diz Millena. Segundo ela, o modelo atual cria um ciclo vicioso: a tarifa sobe, os passageiros diminuem e as empresas pressionam por novos reajustes.

“São Paulo já subsidia mais de R$ 6 bilhões e ainda temos que pagar R$ 5,00? Estamos pagando duas vezes”, critica.

Sem gestão popular, tarifa zero tem limite

Entre as propostas debatidas está a criação de uma taxa de transporte, paga principalmente por grandes empregadores, substituindo o vale-transporte — modelo testado em Vargem Grande Paulista e debatido em Belo Horizonte. “Os empregadores são diretamente beneficiados. É justo que contribuam”, afirma Gustavo Serafim.

Outro ponto central é a mudança na forma de remuneração das empresas. Hoje, São Paulo paga por passageiro transportado, modelo que, segundo especialistas, incentiva a redução de frota.

“A gente paga para o ônibus andar vazio. Ele não anda vazio: anda com motorista, cobrador, combustível, manutenção e depreciação. Ou seja, ele anda com custo”, explica Serafim.

A discussão ganhou escala nacional. A pedido do presidente Lula, o Ministério da Fazenda estuda a viabilidade de um programa nacional de tarifa zero, nos moldes do SUS, com um Fundo Nacional de Mobilidade.

Enquanto isso, o interior paulista segue funcionando como laboratório. Entre avanços e limites, essas cidades mostram que a tarifa zero deixou de ser exceção e se tornou um debate central sobre quem paga, quem decide e que cidade o Brasil quer construir.

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