Política
Publicado em 26/12/2025, às 16h04 Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil Érica Sena e Marcela Guimarães
O Centro de São Paulo voltou a ser tratado como vitrine. Nos últimos anos, a região histórica da cidade passou a ocupar o local do discurso oficial e do mercado imobiliário como uma alternativa de oportunidade, inovação e diversidade.
Prédios antigos reformados, incentivos ao processo de modernização e adaptação e lançamentos residenciais de alto giro alimentam a narrativa do “novo Centro”.
Por outro lado, longe das fachadas restauradas e das tantas propagandas, outra cidade se destaca sendo invisível, superlotada e desigual.
Cortiços, pensões e microapartamentos de metragem mínima seguem como a principal alternativa de moradia para milhares de pessoas que precisam viver perto do trabalho, do transporte público e dos serviços básicos.
Segundo a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), existem mais de 1.080 cortiços ativos na região central, concentrados em bairros como Sé, República, Brás, Bela Vista e Santa Cecília.
Estudos do LabCidade, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, estimam que cerca de 18 mil pessoas vivem nesses imóveis, em sua maioria pessoas negras, migrantes e trabalhadores com renda de até dois salários mínimos.
Nos cortiços, o único foco é de adaptação extrema. Quartos com menos de dez metros quadrados concentram famílias inteiras. Banheiros e cozinhas são compartilhados por dezenas de moradores. A ventilação é insuficiente, a iluminação precária e a fiação improvisada (com o famoso “gato”).
Apesar das condições, o valor cobrado não é baixo. O aluguel de um quarto pode ultrapassar R$ 600, sem garantia de contrato formal. Ainda assim, para muitos, é a única forma de permanecer na região central e, de certa forma, na capital.
Enquanto os cortiços seguem como solução informal, o mercado imobiliário formal há anos aposta nos microapartamentos, unidades com menos de 30 metros quadrados que passaram a dominar os novos empreendimentos do Centro.
Incentivados por mudanças no zoneamento urbano e políticas baseadas em atrair novos moradores, esses imóveis cresceram de forma acelerada nos últimos anos.
O discurso é de moradia acessível, funcional e conectada. A prática revela outra realidade: os números chocam não só pelo preço, mas pelas condições.
Dados apresentados pela empresa de aluguel e venda de imóveis QuintoAndar mostram que, para morar formalmente em um microapartamento de 22 metros quadrados no Centro, o investimento não sai por menos de R$ 1,5 mil — ou seja, quase o valor do salário mínimo vigente.
As opções não incluem condomínio e contas básicas. O perfil dos moradores é composto, em geral, por jovens de renda média, estudantes com apoio familiar ou profissionais em início de carreira, um público distinto daquele que historicamente ocupa o Centro.
É o caso de João Vitor Menezes, de 24 anos, morador do bairro Santa Cecília que veio de Belém, no Pará, para estudar e trabalhar. Ele, que divide um microapartamento com um amigo, só conta com dois cômodos em casa. O valor do aluguel? “Apenas” R$ 1.650.
“Eu faço Pedagogia e queria sair do [meu] estado para crescer aqui. Quando cheguei, não conhecia ninguém e vim morar com outra pessoa que conheci por meio de um grupo de calouros, ou eu teria que continuar em um quartinho cheio de bolivianos e paraguaios que peguei quando cheguei [em São Paulo]. Era isso ou ir para outra universidade morar em república”, explicou.
A chegada de novos moradores também é um dos fatores que disparam os preços e os impactos dos aluguéis em geral. “Eu não tinha o que fazer, é o padrão da cidade. Arriscado, mas quase desisti. Hoje nós dois trabalhamos e nos ajudamos pelo medo de voltar para a situação de antes. Juro que já cheguei a pensar: ‘Vou pagar tudo isso e vou comer o quê?’”, disse João Vitor. “Temos uma beliche e um sonho”.
A Defensoria Pública do Estado de São Paulo aponta que recebe denúncias recorrentes sobre insalubridade, superlotação e risco estrutural em cortiços e pensões.
Em muitos casos, os imóveis funcionam sem alvará ou sem cumprir normas mínimas de segurança. A fiscalização municipal é pontual e reativa, geralmente acionada após denúncias ou acidentes.
“O poder público tolera a precariedade porque ela sustenta a cidade”, afirma um pesquisador da área de habitação. Segundo ele, trabalhadores essenciais, da limpeza urbana ao comércio informal, dependem dessas moradias para manter a engrenagem funcionando.
O contraste se torna ainda mais evidente quando cruzado com dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que apontam que cerca de 20% dos imóveis residenciais do Centro de São Paulo estão desocupados.
São prédios vazios ou subutilizados, muitos mantidos como reserva de valor à espera de valorização imobiliária, enquanto milhares disputam quartos insalubres ou estúdios minúsculos.
Para movimentos de moradia, trata-se de uma escolha política. “Não falta espaço, falta vontade de garantir moradia como direito”, afirma uma liderança do movimento.
A distribuição dessa precariedade não é aleatória. A Sehab mostra que a população que vive em cortiços é majoritariamente negra, com menor renda e maior exposição a riscos ambientais e sanitários, um retrato do racismo ambiental.
Falta de ventilação, calor excessivo, mofo e risco de incêndio são problemas recorrentes que afetam pessoas historicamente vulnerabilizadas.
Enquanto isso, a revitalização avança de forma seletiva, tirando do foco populações pobres e, consequentemente, colocando as próprias em condições cada vez piores.
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